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22 de fevereiro de 2010

Qualidade e Sentido da Vida



Por José Carlos Fernández
Diretor Nacional da Nova Acrópole Portugal


Esta é uma questão que atrai a atenção de todos, e de cada um de nós. No tique-taque do relógio, no curso dos dias ou na sucessão das estações, o ritmo do tempo reflecte o movimento da vida. Late o coração e a vida foge, tanto mais veloz quanto mais queremos deter a sua marcha invisível.

Esta é uma realidade tangível à qual, no entanto, raras vezes prestamos atenção. Vivemos envoltos pela armadura dos nossos pensamentos, desejos e temores. Vivemos tão identificados com a máscara, que pensamos que nos protege do mundo e de nós mesmos, que não percebemos que podemos morrer e renascer com o tempo que morre e renasce. É que a vida é, em si mesma, o eterno presente de uma renovação contínua. É como o fogo que tudo torna seu ao converter em chamas. É como o curso de água que tudo fertiliza à sua passagem. Não é esta, no entanto, a verdade que clama todos os dias às portas da alma, mas sim outra. E o que queremos, desejamos, necessitamos e exigimos é qualidade de vida, como melhorar a vida, a nossa vida. Como obter ou conquistar QUALIDADE DE VIDA.

Mas, como filósofos, a primeira pergunta que deveríamos fazer é a que questão nos referimos: à qualidade da vida que nos envolve, da circunstância que nos rodeia? Ou à qualidade da vida que, invisível, flúi como um rio interior?

Com olhar atento descobrimos que o que chamamos “qualidade de vida” são comodidades materiais, psicológicas e mentais. E na realidade não temos direito a chamar qualidade de vida àquilo que adormece a própria vida.

A verdadeira qualidade de vida está vinculada a um sentido aristocrático, na acepção platónica, a uma selecção do melhor da vida, das suas mais subtis emanações. O grande legislador e profeta Maomé dizia que percebia o melhor e mais subtil da vida nos aromas e na graça feminina. Platão na beleza, que na Natureza reflecte a face de Deus. Shakespeare nas vibrações musicais que se percebem na natureza e comportamento dos seres que a vida alenta. Gengis Khan na oportunidade de enfrentar e vencer inimigos, na destruição de tudo aquilo que limita e empobrece.

A verdadeira qualidade de vida é sempre fruto de uma boa escolha; e nesta há sempre um certo risco e espírito de aventura. Certo esforço e dificuldade, certa tensão interior, segundo a máxima pitagórica de que “o belo é difícil”.

Onde há mais qualidade de vida? Em arriscar e trabalhar as próprias iniciativas ou em estar brutalmente exposto às iniciativas e planos dos outros? Em servir uma Causa Justa, ainda que com dificuldades económicas e pessoais, ou em ser uma peça de uma maquinaria cujo trabalho não estamos certos de que seja útil, necessário ou bom para alguém? Em sentir que o tempo está vivo, é fértil em criações belas e eficazes; e que a vida parece assim uma dança ou um combate sagrado? Ou em sentir que a vida é um cárcere onde nos morre a alma e onde se dissipam todos os nossos sonhos e esperanças? Em viver o orgulho e a felicidade de para quem e para quê trabalhamos ou em ser mercenários da vida, escravos a tempo parcial que procuram uma felicidade que nunca chega?

Uma coisa é certa: não há qualidade de vida onde chegam, lacerantes, os dedos gangrenados da contaminação. Contaminação luminosa, que nos impede de sorrir à estrela que sorri; e sentir tremer a alma diante da estrela que cintila. Contaminação das águas, que empobrece a nossa vida e, o que é pior, a nossa alegria e esperança. Contaminação do ar, cada vez mais repleto de gazes nocivos e metais pesados, quando não de ruídos artificiais e estridentes no que agora chamamos “contaminação sonora”.

Relativamente à qualidade da vida que nos envolve, como uma matriz, e que é inseparável do nosso crescimento como seres humanos, devemos ter em conta que a qualidade do mundo que nos vendem não é a qualidade do mundo em que vivemos. Que é mais importante um trato ameno, digno e afável do que a aquisição de muitos bens materiais. Que é melhor dispor de uma hora diária para os “divinos ócios” ou para a sã conversa e convivência humana do que 10 metros quadrados a mais na nossa casa. Que é mais rico aquele que menos deseja e não aquele que mais tem. Que a beleza está no esplendor da vida e não nos implantes, nas dietas desregradas, nos lifting e outros onde nos convertemos em objectos, escravos da opinião e da aceitação alheia. Que há mais, infinitamente mais qualidade de vida na concentração, na contemplação filosófica, na reflexão serena, na sã emotividade e na acção desinteressada do que na mente instável e enlouquecida por tanta publicidade, na competição animal e na desonestidade que degrada a alma. Que é melhor, ainda que mais difícil, ser donos de nós mesmos que escravos dos demais, ainda que seja vivendo na opulência. É também interessante pensar que o que é válido, ou inexistente num tempo e lugar, converte-se necessário em outro e imprescindível mais adiante. Como dizia Séneca, muda de século e te darás conta de que as tuas necessidades de hoje eram luxos antes; e aquilo que agora consideras vital, básico, poderá amanhã ser um luxo inalcançável. Já sabemos que tudo neste mundo é relativo.

Isto é relativo à vida que nos rodeia, relativo à vida que respiramos. Relativo à vida que “invisível, flúi como um rio interior” e que é a vida da alma, ou vida interior, esta não se mede por valores relativos porque os valores e necessidades da alma são invariáveis e não dependem de nenhuma coordenada de tempo e lugar. A sua medida é a da alma humana. A vida interior pode arder com chama pura nas condições mais miseráveis e onde a qualidade de vida, externa, sucumbiu. Quantas vezes a história o demonstrou! Quantas vezes mesmo no cárcere, como Dostoievsky, ou submetido à tortura, como Giordano Bruno ou Campanella, ou na doença e na pobreza, os séculos viram erguer-se, como um estandarte luminoso, a chama da verdadeira vida interior! E esta nada necessita, a não ser um Nome secreto a quem servir e ir abrindo caminho, delicada e tenazmente, ao caudal inesgotável das suas fontes eternas. Ela é, e nada mais que ela, o verdadeiro sentido da vida, a verdadeira qualidade de vida, o íman único e real da nossa existência, da que tudo o resto são véus e cenários móveis. Quem se decide a aventurar o passo nesta senda sente que o tempo se converte em espaço interior. Quem não seca as fontes, quem não fecha as portas sentirá uma perene juventude que se renova dia a dia, mês a mês e ano a ano. Esta vida interior é a vida permanente que não é escrava do tempo e que pode passar de cabeça erguida, impávida e serena as portas da morte. Como nos versos dos Upanishads, obra mística e filosófica da Índia:

“Na verdade um esposo não é amado pela sua mulher, pois só quando se ama Aquilo o esposo é verdadeiramente amado. Certamente uma esposa não é amada pelo seu marido, só quando se ama Aquilo a esposa é verdadeiramente amada."

“Na verdade os filhos não são amados pelos seus pais, pois só quando se ama Aquilo os filhos são verdadeiramente queridos."

“Na verdade a riqueza não é amada pelos ricos, pois só quando se ama Aquilo a riqueza é verdadeiramente querida."

“Na verdade a casta dos brahmanes não é amada por eles, pois só quando se ama Aquilo a casta dos brahmanes é verdadeiramente amada."

“Na verdade a casta dos kshatryas não é querida por eles, pois só quando se ama Aquilo a casta dos kshatryas é verdadeiramente querida."

“Na verdade os mundos não são amados pelos homens, pois só quando se ama Aquilo os mundos são verdadeiramente queridos."

“Na verdade os Deuses não são amados, pois só quando se ama Aquilo os Deuses são verdadeiramente amados."

“Na verdade as criaturas não são amadas, pois só quando se ama Aquilo as criaturas são verdadeiramente queridas."

“Certamente não há nada que possas amar, pois só quando amas Aquilo tudo se converte no objecto do teu amor."

“Aquilo tem que ser visto, ouvido, percebido e conhecido, oh Maitreyi! Quando vemos, ouvimos, percebemos e conhecemos o Ser tudo o demais é verdadeiramente conhecido”.

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